domingo, 19 de janeiro de 2014

Campismo, quase um gueto

 

 Nadja Sampaio

Nadja Sampaio (nadja.sampaio@brasileconomico.com.br)

 

Sempre gostei de acampar, mas ser campista no Brasil significa, praticamente, pertencer a um gueto

Na década de 80 mandei uma carta para a Karman pedindo informações sobre a Safári (o primeiro motor home montado no Brasil, construído em cima de uma Kombi). Era meu sonho de consumo, que só consegui realizar em 2000. Eu não entendia porque a Karman tinha fechado no Brasil, assim como vários campings, se este país faz sempre calor, tem uma natureza tão exuberante e seria ideal para esta atividade.

Até que me explicaram: as leis de trânsito brasileiras praticamente acabaram com o campismo. Este desastre não aconteceu nos nossos países vizinhos e na Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai, onde o campismo resiste firme.

Na década de 80, o departamento de trânsito brasileiro modificou a lei que definia as categorias das carteiras de habilitação, copiando uma lei americana. Só que fizeram a tradução errada. Pela lei de lá, o cidadão americano precisa de carteira E para dirigir trailers. Porém, nos Estados Unidos, trailers são os grandes caminhões tracionados com o cavalo (a cabine). E trailers de campismo são chamados de RV (Recreational Vehicles). Por causa desta tradução errada, quem tinha trailers e carreta-barraca desistiu do campismo, vendeu o equipamento ou o deixou parado nos campings, o que a gente chama de "roda quadrada".

Isto gerou outro prejuízo, desta vez para os campings, pois diminuiu a frequência e a rotatividade de campistas. O resultado é que muitos campings fecharam. Há anos o Camping Clube do Brasil vem abandonando as áreas de campings, principalmente os de boa localização, para vender os terrenos à especulação imobiliária.

A indústria de trailers e motor home praticamente acabou nesta época. A joint venture entre a Karman e a Volkswagem, que produzia a Safári, acabou em 1993. Tenho a última Safári, construída em 1993, a de número 555. O campismo ficou restrito aos amantes aficionados, que lutaram muito, até que, em 2011, houve a mudança da lei: hoje, com a carteira B, é possível rebocar um trailer ou dirigir um motor home de até seis toneladas. Mas, é preciso andar com a lei, pois muitos policiais ainda não a conhecem.

Esta mudança já começou a transformar o cenário da indústria. Hoje, as fábricas de motor homes, praticamente todas no Sul, estão com fila. Há casos de oito meses de espera e a montagem pode levar até um ano. Ou seja, tem demanda. O Camping Clube do Brasil não vem melhorando, mas outros campings vem surgindo. Vivemos um círculo vicioso, mas que pode se tornar virtuoso. Hoje as pessoas pensam em comprar um motor home pela dificuldade de se encontrar campings bons, com boa localização e um preço razoável, pois com a casa nas costas as pessoas podem parar em estacionamento, em postos de gasolina ou até mesmo em praças nas cidades do interior.

Isso faz com que haja menos investimento em campings. Mas, acredito que os campings vão surgir e muitas pessoas voltarão a acampar, primeiro de barraca, depois de carreta-barraca e, quando o dinheiro aumentar, passam para um trailer (rebocado), camper (um motor home colocado em cima de camionetes e que pode ser retirado) e motor homes (a casa integrada com o carro).

Mas quem pensava que agora estava tudo resolvido com as leis de trânsito se engana. Quem insistiu em se manter no campismo e fez modificações em ônibus e em chassis de camionetes para transformação em motor home ainda pena com a questão dos documentos. Isto porque muitas vezes os Detrans sequer reconhecem estes veículos em seus bancos de dados. E, por outro lado, exigem um monte de documentos para registrar um chassi modificado.

Vários destes motor homes nascidos de chassis modificados têm no documento a descrição "caminhão modificado/motor casa". Os policiais querem obrigar que os motor homes cumpram os horários de caminhão para passarem em estradas, pontes. Só que a natureza de um motor home é atividade de lazer, não é comercial, não carrega mercadoria, não faz sentido esta comparação e exigências.

Mas, o pior não é isso. Agora, os policiais querem que os motor homes passem pelas pesagens nas estradas. A lei mudou, não precisamos pesar motor homes, mas a polícia não sabe. Já fui multada, recorri, perdi o recurso e tive que pagar a multa. A Portaria DENATRAN 870 de 26 de outubro de 2010 determinava que veículos pesados, que devem passar pelas áreas de pesagem são ônibus, microônibus, caminhão, caminhão-trator, trator de rodas, trator misto, chassi-plataforma, motor-casa, reboque ou semi-reboque.

A Portaria DENATRAN 85, de 27 de março de 2013, alterou a Portaria 870 e passou a vigorar com a seguinte redação: entende-se que veículos pesados correspondem a "ônibus, microônibus, caminhão, caminhão-trator, trator de rodas, trator misto, chassi-plataforma, reboque ou semirreboque e suas combinações". Portanto, por esta nova legislação, motor-casa não consta na lista e não está obrigado a entrar nas áreas de pesagem. Porém, como fazer para que os policiais saibam qual a lei em vigor?

Mas, o que mais me espanta é como as autoridades não veem no campismo uma atividade rentável para o turismo. O campismo, assim como a indústria de barracas e acessórios, motor homes e trailers, em toda a Europa, Estados Unidos, Austrália, Canadá, são fortemente incentivados. Aqui os campistas são mal vistos, como pessoas que querem fazer turismo sem gastar nada. Como assim? Pagamos pedágios, restaurantes, combustível, campings, passeios guiados, supermercados.

Somos fonte de renda. As autoridades também não se deram conta de que a Copa vai trazer muitos sul americanos de motor homes e trailers para o Brasil. E onde esse povo vai ficar? Nas ruas, nos estacionamentos, quando poderiam estar em campings, terem uma boa experiência e levar para os seus países a possibilidade de voltarem a visitar o Brasil. Fazer do campismo um gueto é de uma miopia empresarial enorme, principalmente no Brasil.